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Sobre desenhar repetidamente o outro

 

Por entre as medidas isolamento social, a mídia propagava, meses atrás, instruções de como se exercitar no home office. Recordei então de um desenho que fiz em 2014 chamado Atividades para escritório, onde homens de gravata jogam capoeira e um outro pratica ioga. Interessou-me aqui, desde o princípio, o fato da palavra exercício ser utilizada para se referir ao ato de realizar práticas corporais desportivas. E também para referir-nos ao ato de praticar tarefas afim de fixar um conteúdo, tópico ou de aprimorar habilidades, como ocorre nas escolas. Para a criação desta série, eu-autor, coloquei-me em um exercício de repetição do ato de desenhar as figuras em posturas idênticas com o uso de linguagem, técnica e materiais específicos: o desenho à nanquim sobre papel; como modo de permitir que as sutis e inevitáveis diferenças surgissem no desenho e em minha percepção dos corpos em sua diversidade, ao longo deste processo de criação das imagens.

 

O desenho - o exercício - funciona assim como uma ativação, onde me coloco em prova menos para dominar a técnica do desenho do que para vê-lo acontecer no processo de produção de uma série. O artista francês Moebius no texto introdutório de Major Fatal (obra gráfica no Brasil conhecida como A Garagem Hermética) se refere a esta sua novela gráfica como “páginas que hoje contemplo quase como um diário íntimo codificado”. Esta idéia de um processo íntimo que ganha autonomia na medida que se desenrola com os dias, se apresenta nos desenhos desta série, no modo como o traço se transforma ao longo do tempo, a cada nova folha rabiscada.

Nos desenhos apresentados em Combinatória, não há intenção outra do que a da repetição daquelas figuras imersas em seus movimentos, num diálogo com a tradição chinesa do I Ching da qual utilizei o princípio da combinação para, partindo de quatro posturas básicas, construir três linhas com uma sequência de momentos distintos de um exercício. Outro diálogo estabelecido foi com a obra Four basic kinds of straight lines de Sol Lewitt, incorporado na construção das tecituras, mas também por trazer a ideia de que o jogo combinatório é o motor neste procedimento. Ao mesmo tempo me distancio do procedimento de Lewitt pelo fato de que, assim como Moebius, não haver me tratado o sistema proposto com máximo rigor intelectual mas com uma liberdade íntima. Ainda que a execução possa ser um mero trabalho superficial em relação à proposta, é lá que me “desconstruí” em um sentido ético-político.

 

Elaborou-se esta partitura, composta pelos personagens vestidos com roupas de trabalho próprias dos ambientes de escritório (office), e que se mostram enquanto exercitam seus corpos, ação recomendada para o cuidado de si e considerada extremamente importante no contexto atual, quando a pandemia Sars-Covid-19 levou pessoas à ingressarem no modo de trabalho remoto. Cada figura se apresenta sobre um linha invisível que não descreve o entorno, e a ausência do local destaca-se como espécie de elemento cenográfico que pode representar tanto o tempo quanto a tarefa, criando um jogo surrealista de repetição nonsense.

 

A partir da produção das primeiras folhas, percebi que a atividade de produzir toda a sequência de imagens com estes personagens de escritório e seus exercícios físicos, relaciona-se com a percepcão que tenho do desenho enquanto atividade que pode dispensar uma "utilidade", visto que aqui não está a serviço de uma narrativa objetiva, mas como sinalização para as variadas condições nas quais vivemos encerrados desde março de 2019 (e que ainda assim, já eram sentidas antes disso): o distanciamento e o isolamento, a força de vontade de seguirmos nos movendo diante das adversidades, a diferença e o outro... os personagens não se tocam e parecem encapsulados em seus espaços determinados.

 

Este processo me levou a perceber e desconstruir - descolonizar? - meu repertório de como representar pessoas e foi daí que ao buscar diferentes "tipologias" corporais, passei a observar o outro com uma atenção renovada. O traço das primeiras figuras não é o mesmo das últimas, e a multiplicidade passou a orientar minha ação. Surgiram negros, mulheres, velhos, pessoas com lordose, obesos, pessoas de meia idade, pessoas trans, sujeitos magérrimos, jovens empoderados, carecas, moças fora do padrão, todos resultado de exercícios com o olhar atento nesta reaproximação com o corpo social, um pouco por saudade e muito por necessidade.

Combinatória é um exercício e um desdobramento.

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